terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Botão Dida



Por Edmar Facó  

Desde pequeno, Dida é meu ídolo. Na final do Carioca de 1955, ele fez quatro gols e o Flamengo venceu de 4x1 o América, no Maracanã, dia 4/4/56, conquistando o 2º TRI Campeonato Carioca.

Desde pequeno, gosto de brincar de botão sozinho ou com amigos. Gostava de reinventar jogos de futebol com os times cariocas do Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, América, Bangu, São Cristóvão, Madureira, Olaria, Portuguesa, Bonsucesso e Canto do Rio. Nos campeonatos que eu organizava, entravam todos os times e ídolos.

Em junho de 58, do alto dos meus 9 anos e meio, contratei o personagem da final do 2ºTRI para reforçar o time de botão e disputar a Copa do Mundo na vila onde morava. Minha seleção de botão foi da Áustria. Não venci a Copa do Meier na Vila, mas a Seleção Brasileira foi Campeã da Copa do Mundo na Suécia.

A cada dia que eu brincava de jogar botão, tipo sete dias por semana, ficava mais cobra. Eu e meus botões. Com eles reinventava os passes e gols do Flamengo, em especial do Dida nos gramados. Com eles, era o técnico, jogador e narrador de partida. Estava em campo e no rádio. Eu e meus botões.

Joguei muito, até uns 17 anos, quando aposentei o Dida e todos meus botões numa caixa de tênis kichute, no fundo de uma gaveta.

Mais tarde voltei a jogar pra ensinar ao meu irmão-temporão-quase filho e aos meus dois filhos, e o Dida voltou a brilhar nas mesas de botão. Os meninos dividindo seu tempo com os jogos de Atari. No Maraca, brilhava o Zico, ídolo dos filhos. Até que em um treino, com o filho que gostava  de jogar botão, na hora de um chute ao gol... Creeeck... Dida se contundiu seriamente e quebrou as duas pernas em 3 pedaços. Foi operado de emergência com super-bond, com direito a transplante: encavalei os pedaços em cima de outro botão e refiz as superfícies e a bainha. Ele continuou jogando.

Depois de aposentado, joguei por uns tempos na Praça dos Cavalinhos na av. Maracanã, nas manhas de domingos, com um grupo em torno das mesas que um amigo botonista armava por lá. Um dia parou e não voltou.  

O mais legal na brincadeira de jogar botão é encontrar os amigos para um papo furado e discutir numa boa as regras, que estão sempre sendo mexidas desde sua criação, e comentar os jogos e noticias de futebol.  

O jogo de botão foi criado pelo carioca Geraldo Cardoso em 1930. Antes de mim, do Dida e do Maracanã. E ele nem sabe, mas sinto saudade das partidas de botão nas mesas ou chãos contra os amigos da vila e ruas vizinhas, dos jogos no estádio de futebol torcendo na arquibancada pelo Dida e o Flamengo, ao lado do pai, amigos e a Charanga do Jaime, assim como dos deslocamentos de casa pro Maraca e da volta pra casa de trem ou bonde. Saudade dos golaços do Dida, dos amigos e do pai.  

Até hoje, esporadicamente, ainda brinco de jogar botão, sozinho ou com novos amigos botonistas. A coluna grita e ri.

Em 2018, o meu botão Dida vai fazer 60 anos em junho; e seu técnico, 70 anos em dezembro.

Notas:
Botão = Jogador em forma de disco de várias alturas, diâmetros e inclinações das bainhas. Feitos de plástico, galalite, acrílico, osso, coco etc. Inicialmente eram botões usados em casacos, capas e batinas.

Dida, o botão = Amarelo opaco de galalite; altura 2,5mm, diâmetro da base 42,5mm e bainha 55º. Após a contusão e transplante em 95, encavalei sobre um botão transparente de janela de lotação; altura nova 5,25mm, novo diâmetro da base 45,5mm e bainha 55º. Medidas tiradas com régua escolar, pois não tenho paquímetro. O melhor e maior artilheiro do mundo dos campos de mesa e chão.

Paleta = ficha antiga de lotação ou de cassino ou disco similar de galalite.

Bolinha = de miolo de pão ou  papel prata de bombom ou feltro ou dadinho ou disquinho ou botão de camisa ou etc.

Goleiro = caixa de fósforos com peso dentro ou de madeira ou de galalite.

Técnico = Usa a paleta para movimentar os botões e é o narrador dos jogos. E as vezes apitava o jogo junto com juiz.

Dida, o jogador = Edvaldo Alves Santa Rosa. É o segundo maior artilheiro do Flamengo; o primeiro é o Zico que sempre diz que Dida foi seu grande ídolo. Zico, todo final de ano, organiza uma pelada com ídolos veteranos na Arena. Dida continua brilhando com os idolos eternos no Maracacéu.

Áustria = Na Copa do Meier entrou em campo com; Pompéia, Tomires, Pavão, Jadir, Dequinha, Jordan, Garrincha, Didi, Henrique, Dida e Babá. Na Copa da Suécia, Brasil3x0Áustria no 1°jogo, com Dida em campo. Ele se contundiu e foi substituído pelo jovem Pelé que com Garrincha e mais noves foram campeões invictos.

Maracanã = Estádio de Futebol construído para Copa de 1950 e foi considerado o maior templo do futebol mundial. Praticamente demolido em 2012 (mas isso é outro conto) e, no seu lugar, construída uma Arena Multiuso para a Copa de 2014. 

sábado, 18 de julho de 2015

Vamos falar de perdão?

 

Não, não podemos falar sobre o perdão.

O amor também acontece no coração e muito se fala sobre ele.

E o perdão? Falo, logo, tudo perdoado.

Não, não podemos falar sobre o perdão.

O amor nasce e a palavra o alimenta (ou o mata de fome). Pode começar tufão ou ser apenas um sopro de amor. É falar dele que a imagem vem fresca. Ganha jardim. Voam os pássaros e as borboletas. Alcança-se um tronco torcido. Uma nuvem no céu. E pronto: o amor se inscreve. Até quando não há mais amor, se você fala dele o mantém vivo. É uma coisa sublime. Pode ser inventada.

O perdão é assim. Você recebe um aviso no peito: perdoa. Feito. Tranque o perdão e siga em frente. Sem tocar no assunto. Só que tem assunto com vontade própria. Vai você falar de perdão por isso, por aquilo e descobre: a porta está encostada. Dos infernos, o que você sente não é nem primo distante do perdão. Você quer morrer. Matar. Não adianta falar, você está longe. Longe de perdoar.

Dia desses, alguém disse: você perdoa quando não tem mais necessidade de falar.

Então, é isso? O perdão é calado?
Não chega anunciando feito amor. Nem quebrando pratos feito ódio.
O dia em que o perdão chega a gente nem sente. Senta e toma chá.

O perdão, suspeito, deve vestir manto branco. Envolve o coração e o faz parar de sangrar.

Perdão é paz?

Não, não podemos falar.



Foto 1: Sônia Ribeiro
Foto 2: Catarina Ribeiro
 Manto Mana, exposição "Maria de todos nós".

terça-feira, 29 de julho de 2014

Parece que foi ontem



Atravessei o portão esbaforido. Queria chegar logo na banca pra comprar mais figurinhas da Copa. Faltava muito pouco pra completar o meu 1º álbum! Todo tostão que recebia logo se transformava na figura de algum craque.

No meio do caminho, vi na loja de doces da Dona Ângela uma coisa esquisita. Um treco. Parecia pequeno, mas podia ser grande. Parecia ser de papel, mas podia ser de plástico. Parecia com algo que nunca tinha visto. Um treco qualquer.

Sem perceber, lá estava eu: diante da vitrine da Dona Ângela pra tentar adivinhar que treco era aquele. Conversava com o tico e o teco em busca de alguma resposta.

Será que entro e peço pra ver? Mas a loja está tão cheia... E Dona Ângela não é muito de papo... E se perco a hora da escola? E se não consigo depois ir à banca? O Carlos vai estar cheio de figurinhas pra trocar no recreio...

Como quem cutuca pensamento, o seu Miguel se meteu no meio da minha dúvida:

- Pedro, meu filho, entre logo! Daqui a pouco, não passa o seu ônibus pra escola? Olha, que senão você se atrasa de novo.

O seu Miguel era nosso vizinho desde sempre. Vivia sozinho. Acho que não tinha filhos. Só uma irmã que, de vez em quando, aparecia pra visitá-lo. Toda vez que o ônibus buzinava pra me buscar em casa, ele sempre ia até a janela. Parecia me dizer adeus com os olhos, mas podia ser só uma esquisita mania.

Levei um susto tão grande que, de repente, já estava dentro da loja da Dona Ângela, ao lado do seu Miguel e diante daquele treco, que estava lá em cima, na última prateleira. Sozinho. Não havia mais nada perto dele. Só dava pra ver a lateral. Parecia meio velho, mas podia ser novo. Parecia não ser nada, mas podia ser alguma coisa. Que treco curioso!

- Então, Pedro? Quer um saco de balas de caramelo?

- Não, seu Miguel, obrigado...

A loja estava tão cheia que Dona Ângela nem notou nossa presença.

- Pedro, que tanto você olha?

- Pr'aquele treco lá em cima!

- O quê, meu filho? Não vejo nada... Que treco é esse?

Enquanto ele procurava o ponto da minha vista, me enchi de coragem, passei por umas dez pessoas, cheguei até a Dona Ângela, apontei pro treco e de uma vez só perguntei:

- Dona Ângela, que treco é aquele que parece pequeno, mas pode ser grande; que parece de papel, mas pode ser de plástico; que parece velho, mas pode ser novo; que parece não ser nada, mas pode ser alguma coisa?!

Falei tão alto que todos pararam pra me escutar. Foi igual cena de cinema. Sabe quando as pessoas e as coisas congelam e só você continua em movimento? Pois foi assim.

Dona Ângela, respondeu feito doce que desmancha:

- Pedro, isso não é um treco... Parece com este álbum que você carrega debaixo do braço, mas pode ser diferente.

Pegou um banquinho e alcançou a minha curiosidade:

- Aqui está a história de outro colecionador. Meu Pai.

De dentro do saco, ela retirou um a um. Mostrou todos os álbuns de figurinhas de Copa do Mundo desde 1958, quando o Brasil foi campeão pela primeira vez, na Suécia. Parecia uma aula de história, mas podia ser só a memória de uma senhora.

Virei pra trás e vi os olhos do seu Miguel igual a campo de futebol em dia de chuva. Cheio de poças.


- Parece que foi ontem...
 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A cor do dia


 
O dia amanheceu branco. Cor de nada.
 
Rosa caminhou transparente até esbarrar com o cinza do dia.
 
- Dia, Rosa.
 
- Dia, Cinza.
 
Um raio próximo ao vermelho despontou no céu – um céu de Rosa, somente cinza:
 
- Parte minha é fria, a outra ainda não nasceu.
 
De repente, de mãos dadas ao vermelho, surge o amarelo.
 
- Rosa do céu, veja! Há beleza!
 
O laranja explodiu diante de Rosa.
 
- Alegria, minha gente, bora fazer uma manhã.
 
O galo cantou, Rosa nem olhou. O carro ligou, Rosa não partiu.
 
Foi, então, que chegou João. Pôs azul nos olhos de Rosa.
 
E violeta na cor do dia.
 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O desembrulho


 
- Uma folha é um carinho feito à mão. Soprou a brisa quando a menina abriu o papel e encontrou a seda.
 
O desembrulho revelou uma folha nova. Insuspeitável.
Era marrom, mas não com certeza.
Eram tantos marrons...
 
Era uma mão, um afago.
Uma folha de pelos.
Era um ouvido, uma atenção.
Uma folha de cheiros.
Era uma pá, um barco.
Uma folha de braços.
 
A menina mergulhou no embrulho azul e escuro e desembrulhou algo puro. O outono estendia a mão e pedia:
- Leia o presente, sinta o futuro.
 

terça-feira, 8 de abril de 2014

O embrulho




Papel de seda, conteúdo de outono.

A menina passou os dias com a folha embrulhada. Não conseguia abrir.

Imaginava o seco, as rugas, o formato. Tirar a seda e desembrulhar o outono diminuiria o enfeite da estação.

Tão bonito supor a folha. Adivinhar seu significado.

Ela parecia antiga, retorcida. Marrom, com certeza.

Acomodada no azul escuro, via-se claro o muro. O que separa a delicadeza do papel e o áspero do conteúdo, é a mão imóvel, sem rumo.

A folha tinha ido do chão à seda. Do nada pr'algum lugar. Desabrigar a folha não seria despejo? E abrir uma fresta, invasão?

Resolveu deixar ela ali, quieta. Vai ver é até flor. Ainda tem cheiro, cor.

E de dúvida tomada, a casa dela passou a ser... O interior.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A colheita

 
 

A menina morava perto da avó. Uma porta distante da outra por quatro ou cinco quarteirões, uma fileira de prédios e uma passarela que cruzava a linha do trem. No meio do caminho, quase em sonho, havia um jardim e um pomar.
A avó saia do era uma vez da sua casa, pro aqui e agora da filha, do genro e da neta. Sempre correndo, de um lado pro outro e do outro pro mesmo, os pais da menina pediam ajuda a avó, que deixava sua casa todos os dias carregando um cesto e um pote.
Um cesto e um pote. Era tudo de que precisava. Cismou em ser catadora. Um cesto de frutas, um pote de melado. Um cesto de flores, um pote de buquê. Um cesto de restos, um pote de tudo.
A colheita dos dias enfeitava a semana. Os meses, frutos de um cesto. Um pote de mês. Cheio? Vazio? Dependia do que colhia.
Em dias de chuva, passava quase correndo, pés nas poças, olhos baixos. Catava um pouco do pouco e ao chegar na casa da menina, dizia:
- Trouxe os pingos, um tantinho de lama e muito vento.
- Que coisas esquisitas são essas, vovó?
- É o cesto de hoje, minha querida. Do que será o pote?
- Um pote de... nada!
- Huum, adoro o nada desses dias de chuva! Os pingos brincando de escorrega nas janelas. O vento e seus filhotes nas frestas da porta, monte de convidado pra encher a casa.
- E a lama?
- Bom, com a lama, preciso confessar, não simpatizo muito não... Mas, tudo bem, deixa ela entrar! Não tem jeito mesmo. Ela gosta de deixar marcas, é só a gente passar por ela que, pronto!, ela cisma em ficar com a gente.
- Ah, vovó, isso é muito legal!!! Olha o tapete? Tá com os seus pés grudados!
Em dias de sol, a avó vinha vagarosa, custava a chegar. Cesto explodindo de tão cheio: lírios, rosas, figos, maçãs, abelhas e borboletas.
Batia na porta e a menina, com medo de ser outro alguém, perguntava:
- Quem é?
- Sou eu, minha netinha.
O cesto da primavera entrava na frente e já colhia sorrisos e curiosidade da menina.
- E o pote de hoje, querida?
- Um pote de...vida!
Durante alguns anos que não foram todos, a menina recebeu sua avó.
Até ser ela a carregar um cesto, um pote e um tantinho de lama, mesmo em dias de sol.