quinta-feira, 27 de maio de 2010

Planeta Vermelho

Alô, Alô? Planeta Vermelho? Câmbio? Tem alguém ai? Oiiiiiiiiii. Meu nome é Helena. Tem alguém ai? Bom, sei lá. Ninguém responde, mas deve ter quem escute.

Passo e repasso e não consigo entender. Por que tem que ser passo a passo? Por que não de uma vez? De enxurrada? De repente, que nem chuva que cai sem avisar; carro que passa na rua; caminho que se abre na frente de quem anda? Já sou grande. Tenho 6 anos. Por que pra aprender a ler tem que ser passo a passo, sílaba com sílaba, como diz a minha mãe?

Sabe, Zig – posso te chamar de Zig? Então, posso? Minha vó diz que quem cala consente, hein? Tudo bem Zig. Já vi que ai no Planeta Vermelho o negócio é ficar de orelha em pé. Vai ver vocês nem tem boca. Isso não é problema pra mim. Gosto de falar e você de ouvir. Já formamos uma bela dupla!

Comigo ninguém pode. Adivinho. Invento. Crio. Se me fazem uma pergunta, eu respondo. Se me pedem pra ler, junto p com a e, do pa, já adivinho se é pato, papo ou patati patatá. Minha mãe fica brava. Perde logo a paciência e ai falo pra ela:
- Não gosto quando você fica com essa cara de nervosia.

É, nervosia. Eu não te disse que invento... Ela me olha que nem bicho. Ué, por que tem que ser assim, passo a passo, silaba com silaba? Às vezes, olho bem pra palavra. Olho mesmo, mas, de repente, encontro a lua... Pronto! Já é motivo de bronca. Minha mãe logo diz:
- Filha, pra ler de verdade, tem que olhar pras palavras, juntar as sílabas, passo a passo, não adianta olhar pro nada, pro além.

Ora bolas, além do papel na minha frente e um monte de letrinhas, têm tanta coisa que passa pela minha cabeça. Por exemplo, hoje a Cristina não quis brincar comigo, acredita? Ela é a minha melhor amiga aqui na Terra. Não Zig, ai no Planeta Vermelho, você vem em 1º lugar, pode ficar tranqüilo. E tem mais: o Jorge jogou o meu tênis no lixo na frente de todo mundo e me fez de boba. Fiquei com muita raiva! Mas depois passou. É, como no passo a passo, isso também foi e, depois, passou... Zig, será que a minha mãe tem razão?

Você acha mesmo que tem que ser passo a passo? Eu não. Passo por uma loja e tenho vontade de ler o letreiro. Na outra, não quero. Só um passo não tá de bom tamanho? Tantos passos num mesmo dia cansam pra chuchu! Isso acontece com você, Zig? Ai no seu planeta tem letras? Você tem que juntar sílabas? Já entendi! Você quer que eu te escreva? É isso! Você não fala, mas lê. Êpa, vou ter que aprender! Ainda não sei escrever cartas! Serve silaba com silaba, uma palavra por vez, passo a passo?

Lobo

Lobo é guerreiro.
Lobo abusa do tempo.
Lobo é peixe.
Nada contra a maré.
Fincou o pé na história.
Lobo avança.
Lobo não cansa.
Lobo tinha companhia.
Hoje está sozinho.
Lobo se adapta.
Lobo vive.
Lobo registra imagens.
Pára o tempo.
Lobo d’água.
Lobo resistente.
Lobo não é novo.
É peixe idoso.
57 anos de ofício.
É bicho antigo.
Quase extinto.
Lobo é memória.
Lobo é passado.
Lobo se faz presente.
Lobo mora num Jardim.
Do Méier. Bairro do Rio de Janeiro.
Lobo é Bernardo. Peixe das águas de março.
E, você, não se engane, Lobo é lambe-lambe.

O melhor amigo

Sumir. Desaparecer no além. Ser outro diverso, menos teimoso, mais carinhoso. O desejo de sumir com o que não gostava em si crescia, mas o menino não controlava aquilo que não gostava. O menino sentia que não agradava. De repente, lá estava ele, dentro daquele que queria sufocar, brigando com qualquer um ou lutando por pouco ou quase nada. Via-se pequeno, quando crescia diante de alguém.

Ai o menino parou. Olhou. Era pequeno, mas esperto. Quanto mais olhava, mais se assustava. Sua mãe também ficava brava, perdia a linha. Seu pai, vira e mexe, gritava e se irritava. Seus amigos também tinham seus dias ruins, não gostavam de perder. A mais doce das meninas, não resistia ao impulso de discutir com a melhor amiga.

Disputas. Raiva. Teimosia. Nada disso sumia. Nem nele e nem nos outros. Dava pra nascer de novo?, ele pensava. Como quem descobre um tesouro escondido no fundo do mar, o menino viu que teria um novo amigo pra cuidar. Seu mais novo amigo precisaria dele todos os dias, o tempo todo. Seria seu mais novo parceiro. Seu melhor ouvinte. Seu maior confidente. Ser amigo de si mesmo fez dele mais confiante pra enfrentar aquilo que nele não gostava. E se alguém perguntava: “Ei, menino, como você vai?”. Ele respondia: “Vou bem”.

Mais de um

De dia era um. De noite, nenhum.

De dia brincava, corria. De noite, sumia.

De dia estudava, criava. De noite, sonhava.

De dia crescia. De noite, parava.

De dia reinava. De noite, tremia.

Um de dia e outro de noite?

Num dia ou numa noite, ele descobriu como seria.

Vários. Nenhum. Noite e Dia.

A Busca

Não havia imagem. Nem pistas. Só o desejo de se aventurar. Rui caminhou sem ver. Caminhou pra algum lugar que o levasse a uma imagem. Qual? Rui não sabia. Não via. Não lia. Rui deixava ruir seu castelo de sonhos em busca de novos. Desconhecidos. Inimagináveis. Sem cor. Sem traço.

Aonde Rui ia? Ia ao acaso, à sombra do nada, em busca de coisa não especificada, não identificada. Que mistério a caminhada de Rui! Aonde o levaria? Rui não sabia. Mas queria andar. Queria ganhar: experiência, vivência do que não conhecia. Do que não via. Do que não lia.

Aonde Rui ia? Ele não sabia. Ainda assim, ia. Há passos firmes. Decididos. Exploradores. Humildes. Assim ele ia. Queria ver o que não via. Ler o que não lia. Conhecer a imagem que desconhecia.

Cesto de Letras

Decidida, Mariana correu à rua com a roupa que estava: uma calça surrada de ficar em casa, camiseta branca e tênis pra lá de usado. Cabelos ao vento, Mariana saiu a passos firmes. Daquele dia em diante, cataria as palavras soltas da sua rua. Onde já se viu deixar palavras caídas no chão, sem sentido ou significado? Ou pior: palavras malcriadas ou sem educação?

Tomou pra si o desafio de transformar sua rua num lugar digno de nota. Não era bem uma rua limpinha, de palavras comportadas que ela queria. Talvez, nem soubesse o que desejava, mas tinha certeza do que não queria. Onde já se viu jogar palavra no chão, igual lixo, sem valor ou reflexão? Palavras até vão ao vento, caindo como poesia, conto ou invenção. Mas assim, jogadas, abandonadas, ficam tristes, perdidas em grande solidão. Palavra precisa de companhia, não nasceu pra ficar no chão.

Com seu cesto de catar letrinhas, uma a uma, Mariana as juntou. Como já era tarde, ninguém a viu ou ouviu. Silenciosa como só ela, seus pensamentos travavam uma grande discussão. Feito o serviço, qual seria seu próximo passo?

- Vou com elas ou sem elas? Não posso deixar estas palavras sozinhas, agora abandonadas no meu cesto.

Mariana olhou seu cesto cheio. De A a Z, tinha até bola, chute, briga, amor, amizade, vergonha, carinho e palavrão. Tudo misturado: letras e palavras soltas. Umas doíam, outras nada sentiam e havia aquelas que a rua precisava. Mas palavra que é palavra só ganha significado quando tem autor. E quem diz ou escreve faz tocar o coração de quem recebe. Com seu cesto no colo, Mariana havia encontrado uma solução.
Passou a noite em claro. Juntou as letras e as palavras soltas como um grande quebra-cabeça. Cada letra ou palavra recolhida tinha seu formato, tamanho e cor. Mariana não pensava na forma, pra ela, o conteúdo iria se impor.

“Vizinho e vizinha,
Aqui coloco só as palavras que não machucam – no meu cesto, ficou um monte que dá até vergonha... – e com elas faço um pedido: vamos CUIDAR da rua. Nada de jogar palavras no chão. Você pensou na palavra que largou hoje? Em como ela se sentiu? E se fosse você que tivesse ficado sozinho? Acho que palavra sente frio. É que nem a gente, precisa de carinho. Não é justo deixar palavra jogada no chão. Pode falar, à vontade, o que quiser, quando quiser e pra quem quiser, mas deixe seu nome e diga pra quem é. As palavras agradecem: assim, elas vêm e vão, não ficam perdidas no chão.
Com amor, Mariana.”