quarta-feira, 14 de março de 2012

A cama de baixo



Dormir em casa de vó é deitar em sonho. Visitar o passado, vestido de paninhos bordados, móveis escuros e carregados de sons. Cada peça da casa levanta uma poeira de história. Cada canto revela uma quina de carinho. Cada lembrança acorda uma saudade.

A cama encostada na parede, logo abaixo da janela, deixava espaço para que a minha fosse puxada. A infância era, assim, esticada. Do alto, com seu terço e sua camisola grande, feito dão duas, ela olhava pra mim e me convidava. Primeiro, o “Anjo da Guarda”, depois o “Pai Nosso” e, por último, a “Ave Maria”. Protegida por todos os santos e orgulhosa por saber de cor, adormecia. Suspeito que dormia sorrindo.

A casa era do silêncio. Ouvia-se a geladeira acordando a noite. O relógio badalando na madrugada. Um estalar ou outro em algum canto. Às vezes, acordava. Onde estou?! Bastava olhar pra cima. Pra ela. Sua presença era minha maior oração.

Na casa dela tudo levantava cedo. O cheiro do café. A louça na mesa. As portas e as janelas.

Na casa dela eu não tinha sono. Levantava com beijos e mesa posta.

Saíamos juntas de um jeito que quase não se vê mais. De braços dados. Avó e neta. Era bater a porta e minha mão pequenina procurava o seu braço, já cruzado pra me receber. O caminho era curto até a igreja de tijolinhos. Na hora dos cânticos, sua voz ecoava e eu fazia o maior esforço pra cantar bonito como ela. Ela me olhava e sorria.

Na volta, ela vinha com as músicas. Era um larali, laralá pelas ruas, que íamos nós de braços dados com as melodias. Parávamos na Cobal pra comprar o peixe do almoço e mais larali, laralá pro Seu João. Depois, na barraca de frutas, outros laralis, laralás pra Dona Rosa. E, de refrão em refrão, ela alimentava meu coração.

O domingo não passava, o domingo estacionava.

Ainda hoje vejo a cama de baixo da casa da minha avó e olho pra cima. Pra ela.