sexta-feira, 22 de junho de 2012

Meia-volta


 
De longe, ela parecia grande.  Foi numa tarde sem pretensões de ser ensolarada que uma professora aproximou-se dela. Uma aula, depois outra e mais outra. Nem se sabe quantas foram dadas pra que a moça desse meia-volta (ou teria sido uma volta inteira?).
Primeiro voltou à infância vestida de velha. Depois, despiu-se do que era pra encontrar o que tinha sido. Fechou os olhos e viu sua vila. Seus amigos. Seus avós. Seus pais ainda juntos. Seus irmãos ainda pequenos.
O barulho do monte de pés correndo foi aumentando, conforme ela comandava o botão que amplificava as sensações. Podia agora escutar os gritos da criançada debaixo da sua janela jogando vôlei – um barbante esticado de uma ponta à outra, de um bloco ao outro, preso no gancho que segurava a janela quando aberta.
As janelas abriam pra fora, de dentro pra fora. Hoje, a maioria desliza. Eram dois braços, com duas partes cada. A primeira de vidro e veneziana mantinha os segredos e dava fresta à luz. A segunda era uma aba interna, uma madeira sem vista, que deixava a casa às escuras. Quando os braços abriam juntos, escancaravam tudo e ficavam presos ao gancho pra permanecerem firmes, sem bater palmas. Era uma janela em camadas, revelava ao gosto do morador: aos poucos ou de uma vez.
Por um momento, sentiu-se janela.
Bom era abrir aquela janela. Ela morava no primeiro andar, como sua avó. Seu apartamento: de fundos. O da vó: de frente. A amarelinha rolava na calçada em frente ao da vó. Quando batia sede, era um pulo, um pé trapezista no muro, um joelho no parapeito e o resto do corpo já anunciava:
- Vó, tem água?
Isso, quando o prazer não era só pular silenciosa e “Bú!” pra avó. Saudade da janela que contava aos poucos e se entregava inteira.
Éramos tantos e até tarde, que dormir era quase um sacrifício. Desconfio que todos cochichavam pro santo travesseiro:
- Que o sono venha logo e passe rápido. A manhã já chegou!
Cada dia era o mesmo sendo diferente. Era um lugar como qualquer outro: de crianças, janelas e ruas.  
Quem me escuta contar essa história, às vezes pergunta se a moça é criança. Quem a vê de longe jura que cresceu. Eu guardo as minhas dúvidas.
Faz pouco tempo ela se deparou com “O Fazedor de Velhos” e com o Pacífico, outro mestre em envelhecer espíritos. Nesse encontro de tinta, ela descobriu algo curioso:
- Conheço uma “Fazedora de Crianças”. Uma professora que resgata lá de dentro o que jamais deixamos de ser. Crianças que gostam de despertar.
Toda vez que o escuro incomoda, a moça escancara a janela e trata de chamar a menina. Dá meia-volta e sorri.

Foto: arquivo pessoal

sábado, 9 de junho de 2012

O melhor dos brinquedos



Toda brincadeira parece feita pra avançar. Jogue o dado e ande o número de casas. Mire o chinelo, pegue-o sem pisar na linha e, se acertar, jogue de novo. Até o céu. Pule até cansar; tropeçou é a vez de outro. Assim, o jogo avança e recua. Parada obrigatória. Volte 3 casas. Perca a vez. Ganha quem chegar primeiro.
Será?
Numa partida, as aparências revelam conquistas. Um olhar conta: “quantas casas à frente?”. Um pé ansioso não hesita: “quanto pra chegar no céu?”.
Não conheço criança preparada pra perder. Nasceu já ganhando o mundo no berro. No jogo, pode olhar, é o mesmo. Perder, desde cedo, passa a ser uma baita lição. E de brincadeira em brincadeira, constitui-se um cidadão. Um dia – na verdade, em muitos – a gente perde. No outro – é bem verdade, em poucos – a gente ganha. Viver empatado, pra felicidade geral da nação, é raro, quase que nem bicho em extinção.
Quer ver jogo bom, assim pra tudo quanto é gente? É jogo inventado ou feito à mão. Jogo que vence o tempo e continua por aí. A bola que bate um bolão, a amarelinha que não perdeu sua cor, os jogos de tabuleiro, que até ganharam novos temas e embalagens, mas seguem sob o reinado dos pinos e do dado. A ciranda cresceu e as cantigas mudaram, mas ainda se vê crianças em roda. E pique-pega? Batatinha frita um, dois, três? Um punhado de gente e a brincadeira tá ali, pra pronta entrega. Aliás, um punhado de gente é o melhor dos brinquedos.
Vamos brincar de esconde-esconde? Contar até 10 – não vale olhar, hein? Tem quem olhe... Tem que sair pra todo lado pra se esconder, bem escondido. Tem quem queira aparecer... Mal esconde o riso. Foi achado, não vale denunciar o amigo. Tem quem aponte e o silêncio do gesto revela o escondido. Só não vê quem é cabra-cega, esconde-esconde revela-revela.
E assim, vestido de tempo, não ganha só quem chega primeiro. Quem um dia brincou conhece bem o segredo. 

 
Ilustração: Edmar Facó