quarta-feira, 29 de junho de 2011

Passarinho



Criei grades como quem
Cria passarinho

Cada haste faz seguro
O meu ninho

Voar entre conhecidas paisagens
Cercada de alpiste de coragem

Minha gaiola é meu canto
Abrigo quente, feito manto

Pouso leve, voluntário
Quando voo, vou em bando

Nasci pra cantar em parceria
Permanecer em harmonia

Bato asas com os pés no chão
Meu voo é feito de coração

Nas grades que criei
Sou pássaro livre
Livre, como só eu sei

O lápis



Risca e rabisca. Conta, reconta, inventa. Diz o que vai pela ponta do pensamento. Às vezes, treme, segue a gente. Gosta de preencher vazio. Inclinado a dar opinião.

Vive muito quando é apenas decoração. Se usado, aponta os caminhos e some rápido. Quando é de estimação, vira cotoco e some na mão.

Apagar não é com ele. Há quem grude com este fim, mas ele sempre diz:

- Eu sou o começo, o meio e a inspiração. Não apago nada não!

O papel onde deita a sua fantasia pode ser liso, com pauta, sem nada. Ser solto na vida ou vir acompanhado. Melhor se for branco pra deixá-lo correr pra todo lado.

Andaram dizendo que a vida dele está por um triz. As letras soltas já não dão mais a mão. Das teclas de onde agora as palavras nascem é cada dedo por si e nenhum pelo outro. Comandados, batem forte, tal qual marcha-soldado:

1, 2 vão por ali
3, 4 pra todo lado
5, 6 um de cada vez
7, 8 escrevam dezoito
9 e 10 acabaram-se os papéis.

O apontador sai de cena de fininho, os dedos já não se abraçam. É raro vê-los dançando juntos, coladinhos.

Ele? Resistente, teima em se fazer presente. Feito de madeira, grafite e coração, um bom lápis pulsa, preenchendo a imensidão.

A maleta do meu pai



Uma maleta engraçada. Em seu conteúdo muito menos que nada.
O dedo curioso abria a maleta do pai. A vista só alcançava papel branco e tinta preta.
- Que coisa mais sem graça... – a menina declarava.
Quando o pai chegava era a maleta que primeiro entrava. Preta, fechos de ouro, reluzia como o sapato de couro.
Na casa moravam a menina, a mãe, o pai e a maleta.
- Meus pais têm duas filhas – às vezes, ela dizia.
Cada uma tinha um quarto. Uma cama.
A maleta dormia com os livros. Ela com as bonecas. A maleta só trabalhava. Ela ia a escola e brincava.
O pai passava horas no quarto da maleta. Aberta, ela despejava tanto papel de tinta preta, que a menina achava que, um dia, seu pai se afogaria num mundo sem cor.
- Já sei!
A menina correu para o quarto e lá ficou. Usou tintas, lápis, retalhos e criou... o seu maleto! Verde por fora, colorido por dentro. Com alça macia e um mundo de coisas: álbum de figurinhas, sol vermelho e preto, montanha de neve colorida, mar pra todo lado, anzol e muita, muita linha. No canto, dentro do seu maleto, ela acomodou o estojo novo, os dois livros preferidos e um tanto de folhas branquinhas, lisinhas, para o pouso das mãos, enquanto a vista passearia.
No outro dia, ao lado da maleta estava o seu maleto. Carregava um bilhete:
Fiz mais um filho pra você! O Seu Maleto é todinho seu! Beijos, Bebel
Obs.: se quiser, eu divido meu quarto com ele!


Foto: capa do livro "a maleta do meu pai",
de Orhan Pamuk  - Ed. Companhia das Letras