sábado, 21 de janeiro de 2012

Ancorado



Ele me espia. Não é do céu que me vê. É do mesmo lugar de sempre. Suas palavras me adivinham, me alcançam aonde não cheguei. Por trás delas, se esconde. Por trás delas, me encontra.

Semente que traz o antes e o depois, ele florece. Renasce. Em cada frase, cada linha. Muitas vezes em uma palavra, nas pausas dirigidas. Suspeito que ele carrega os sentidos. Desembaça vistas.  Nos embarca em emoções. Suas? Nossas?

Ele via com os dois olhos. Ouvia com os dois ouvidos. Tocava num longo abraço. Respirava toda brisa.  Dava sabor as palavras e as cantava em demasiado silêncio. Escriba, atento a tudo. A todos. Inteiro, como o menino.

Fatiou a dor, extrato de beleza. Dos ditos revelou os não ditos. Alçou voo de passarinho. Passou? Fincou. Pé. Palavra. Poesia. Ponte. Entre ele e eu: livros. Pedaços de presença. Prosas de papel.

Se todo real foi um dia fantasia, ele se fez fantasia. Como o tempo ancora, ele é o porto do tempo. Dos nossos tempos. Do firmamento, nos olha. Firme, no canto, entre linhas, lá está. No miolo das coisas. No espaço da dúvida.

Seu canto é belo. E a beleza não cabe em si. Não morre no verbo. Parte dele é o que leio, mas ele próprio não está escrito. É mais. Não cabe em livro. Nem aqui. Talvez, na melodia do pássaro, no correr do riacho, na árvore, no ovo, no anjo, no verso que ainda não nasceu ou nas letras que mesmo em harmoniosa união não dão conta de contar. Ele é como Mário: todo mar, todo rio e também é ar.

Ele mora na crianca que foi, no adulto que manifesta, nos livros que fez, nas leituras que faço. Refaço. E sempre farei.


De cor para Bartolomeu Campos de Queirós, de onde estiver ancorado.

Foto: La Chascona, casa de Pablo Neruda,
Santiago, Chile.