quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A colheita

 
 

A menina morava perto da avó. Uma porta distante da outra por quatro ou cinco quarteirões, uma fileira de prédios e uma passarela que cruzava a linha do trem. No meio do caminho, quase em sonho, havia um jardim e um pomar.
A avó saia do era uma vez da sua casa, pro aqui e agora da filha, do genro e da neta. Sempre correndo, de um lado pro outro e do outro pro mesmo, os pais da menina pediam ajuda a avó, que deixava sua casa todos os dias carregando um cesto e um pote.
Um cesto e um pote. Era tudo de que precisava. Cismou em ser catadora. Um cesto de frutas, um pote de melado. Um cesto de flores, um pote de buquê. Um cesto de restos, um pote de tudo.
A colheita dos dias enfeitava a semana. Os meses, frutos de um cesto. Um pote de mês. Cheio? Vazio? Dependia do que colhia.
Em dias de chuva, passava quase correndo, pés nas poças, olhos baixos. Catava um pouco do pouco e ao chegar na casa da menina, dizia:
- Trouxe os pingos, um tantinho de lama e muito vento.
- Que coisas esquisitas são essas, vovó?
- É o cesto de hoje, minha querida. Do que será o pote?
- Um pote de... nada!
- Huum, adoro o nada desses dias de chuva! Os pingos brincando de escorrega nas janelas. O vento e seus filhotes nas frestas da porta, monte de convidado pra encher a casa.
- E a lama?
- Bom, com a lama, preciso confessar, não simpatizo muito não... Mas, tudo bem, deixa ela entrar! Não tem jeito mesmo. Ela gosta de deixar marcas, é só a gente passar por ela que, pronto!, ela cisma em ficar com a gente.
- Ah, vovó, isso é muito legal!!! Olha o tapete? Tá com os seus pés grudados!
Em dias de sol, a avó vinha vagarosa, custava a chegar. Cesto explodindo de tão cheio: lírios, rosas, figos, maçãs, abelhas e borboletas.
Batia na porta e a menina, com medo de ser outro alguém, perguntava:
- Quem é?
- Sou eu, minha netinha.
O cesto da primavera entrava na frente e já colhia sorrisos e curiosidade da menina.
- E o pote de hoje, querida?
- Um pote de...vida!
Durante alguns anos que não foram todos, a menina recebeu sua avó.
Até ser ela a carregar um cesto, um pote e um tantinho de lama, mesmo em dias de sol.

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