De longe, ela parecia grande. Foi numa tarde sem pretensões de ser ensolarada que uma professora aproximou-se dela. Uma aula, depois outra e mais outra. Nem se sabe quantas foram dadas pra que a moça desse meia-volta (ou teria sido uma volta inteira?).
Primeiro voltou à infância vestida de velha. Depois, despiu-se do que era pra encontrar o que tinha sido. Fechou os olhos e viu sua vila. Seus amigos. Seus avós. Seus pais ainda juntos. Seus irmãos ainda pequenos.
O barulho do monte de pés correndo foi aumentando, conforme ela comandava o botão que amplificava as sensações. Podia agora escutar os gritos da criançada debaixo da sua janela jogando vôlei – um barbante esticado de uma ponta à outra, de um bloco ao outro, preso no gancho que segurava a janela quando aberta.
As janelas abriam pra fora, de dentro pra fora. Hoje, a maioria desliza. Eram dois braços, com duas partes cada. A primeira de vidro e veneziana mantinha os segredos e dava fresta à luz. A segunda era uma aba interna, uma madeira sem vista, que deixava a casa às escuras. Quando os braços abriam juntos, escancaravam tudo e ficavam presos ao gancho pra permanecerem firmes, sem bater palmas. Era uma janela em camadas, revelava ao gosto do morador: aos poucos ou de uma vez.
Por um momento, sentiu-se janela.
Bom era abrir aquela janela. Ela morava no primeiro andar, como sua avó. Seu apartamento: de fundos. O da vó: de frente. A amarelinha rolava na calçada em frente ao da vó. Quando batia sede, era um pulo, um pé trapezista no muro, um joelho no parapeito e o resto do corpo já anunciava:
- Vó, tem água?
Isso, quando o prazer não era só pular silenciosa e “Bú!” pra avó. Saudade da janela que contava aos poucos e se entregava inteira.
Éramos tantos e até tarde, que dormir era quase um sacrifício. Desconfio que todos cochichavam pro santo travesseiro:
- Que o sono venha logo e passe rápido. A manhã já chegou!
Cada dia era o mesmo sendo diferente. Era um lugar como qualquer outro: de crianças, janelas e ruas.
Quem me escuta contar essa história, às vezes pergunta se a moça é criança. Quem a vê de longe jura que cresceu. Eu guardo as minhas dúvidas.
Faz pouco tempo ela se deparou com “O Fazedor de Velhos” e com o Pacífico, outro mestre em envelhecer espíritos. Nesse encontro de tinta, ela descobriu algo curioso:
- Conheço uma “Fazedora de Crianças”. Uma professora que resgata lá de dentro o que jamais deixamos de ser. Crianças que gostam de despertar.
Toda vez que o escuro incomoda, a moça escancara a janela e trata de chamar a menina. Dá meia-volta e sorri.
Foto: arquivo pessoal
Esse continho homenageia as janelas e as infancias de uma vila encantada... dei duas meia voltas, uma com vcs crianças e outra minha com as janelas e o portãozinho dos fundos do 102,e o meu grito "Mãe,tem agua!". Bjs
ResponderExcluirPai,
ExcluirLindas voltas!
Saudades dela... Sempre.
Beijos e obrigada,
Rachel
Nossa Raquel...
ResponderExcluirCom os olhos marejados, digo obrigado!
Lincoln (filho da Elza)
Oi Lincoln!
ExcluirQuanto tempo!
Fico feliz que tenha embarcado comigo nesse passeio.
Grande beijo e volte sempre,
Rachel
Bacana,o encontro desta criança com o texto se assim crescerem juntas com o tempoo poderá ser um grande livro.Parabéns
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirMesmo sem saber quem é, agradeço o carinho das palavras.
Valeu!
Rachel
Oi Raquel!
ResponderExcluirLindo texto, principalmente para quem hoje com mais de 50 anos, lembra com tanta saudade de um tempo tão feliz, onde todos eram vivos, com um comprometimento afetivo tão grande que não se percebia outro sentimento que não fosse a amizade sincera.
Eu que te vi tão pequena, me emociono em ler seu blog. E lembrar de tudo que voce passou e que anos e anos antes era igualzinho, as mesmas janelas inclusive, a do 104 que eu morava e a do 102 da Dona Penha e todos os filhos, irmãos, amigos para sempre, portas abertas, pique, bola, crianças e hoje lembranças que contam nossa historia.
bjs
Quanta poesia nestas janelas, nas frestas ensolaradas.
ResponderExcluirVai nos conduzindo para um tempo cheio de aconchego. Lindo!
Beijo
Rachel, desde que nos encontramos na Rovelle brincando com os livros de Sylvia Orthof, só hoje cheguei aqui.
ResponderExcluirEstou encantada com sua escrita. Suas memórias me remetem à infância em Pirapora - MG, na beirinha do Velho Chico, na casa de meus avós.
As janelas eram azuis. Mia Couto diz que: -"não é a casa onde eu vivi, mas a casa que vive em mim".
Um beijo, Ana Benevides
Oi Ana!
Excluir"Essa casa que vive em mim" tem me dado tantas alegrias! Ter vc por aqui é uma delas. Muito obrigada pela sua visita e pelo seu carinho. Fico feliz se abri uma janela azul em você.
Encontrá-los na Rovelle, sob o melhor clima "transylvia", foi um baita presente! E reencontrar o Bené? Foi dar mais uma meia-volta!!
Grande beijo e volte sempre,
Rachel
Rachelzinha, como vc é uma grande escritora, eu me emocionei com seu texto, tudo que vc contou vive em minha memória, em meu coração.
ResponderExcluirOs passos e os sons das crianças, que vinham pelas frestas da janela, ainda é bem vivo na minha cabeça.
E como era feliz escutar a voz dos meus amigos como vc me chamando para brincar e ao abrir a janela, me deparava com a turma esperando para brincar de barrilho, elástico, amarelinha...
Ahhhh, quantas saudades!!!
Janela que representa liberdade, felicidade, infância, amizade.
Amiga parabéns, vc é um talento, e faz desse talento, mais enriquecido.
Bjs
Rosana Normandia
Rachel,ou devia te chamar de "tiqueta"?quando vc era muito pequena e seu tio Fabiano te chamava assim vc chorava, e procurava o Edmar que ficava puto com o Fabiano, sou o Emerson, filho menor da dona Ivone do 303, lembro ate hoje que quando eu ficava doente a tia Penha (sua avo) subia a escada com a seringa no estojo de aluminio para dar injecao. Filha parabens pelo lindo texto.
ResponderExcluirAquela Vila era ENCANTADA! As varandas, os jardins, os blocos, o cantinho do bloco 8, as festas juninas, as portas que viviam abertas pra gente tomar água, fazer um pipi, filar um bolo, as balas do seu Casimiro, as escapadas nos tetos dos blocos, as nossas Ivones, Carlinas, Penhas, Moemas, Carminhas, Dalilas, Lilis, Elzas e tantas outras rainhas, os nossos heróis Camisão, Zemir, Mariano, Gugu, Eddie, Ademar, Rubi e tantos outros reis que fizeram filhos e netos que muito aproveitaram dessa Vila Encantada.......Ahhh, tenho muito orgulho e gratidão de ter nascido lá e lá vivido minhas fases de criança e juventude....belo texto da minha afilhada " Tiqueta " ...Mil beijos, fabiano.
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