terça-feira, 23 de novembro de 2010

Aplauso



O último espetáculo. Serena, tranquila, ela fez sua última apresentação. Diante da família, de queridos amigos, ela terminou a cena sob aplausos e ao som de “What a wonderful world”, de Louis Armstrong. O canto suave e emocionante foi ponte entre a platéia e a artista. Entre este e o outro mundo. Ambos, aos olhos de quem vê, maravilhosos.

De pé, os presentes rezavam: “Ave Maria, cheia de graça!”
De pé, os presentes gritavam: “Bravo! Bravo! Bravo!”

Entre flores e cantos,
falas e fotos,
risos e choros,
ela fez sua passagem.

As cortinas baixaram. O fogo se apagou. As almas foram tocadas.
Seu espetáculo foi, em todos os atos, uma verdadeira celebração à vida.
Da efêmera à eterna.

Aplausos para Marpe! Mar de Maria, Pe de Penha.
Artista da vida!



Para Marpe Facó Soares Drummond, com amor.
Por sua alegria. Por sua energia vital.
Por sua coragem em enfrentar os reveses da vida.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A renda


Era branca. Uma trama delicada, num lenço pequeno. Tinha cheiro de história. Veio na mala de uma menina do nordeste, que, pela primeira vez, saia de sua cidade para acompanhar o marido. De Fortaleza para o Rio de Janeiro, da casa dos pais para sua própria casa. De um pulo para outro, já era mãe de 4 filhos e avó de 7 netos. E a renda não se rendia ao tempo. Intacta, esperava na mala.

A menina fez sua historia e também aprendeu com ela. De dona de casa à catequista da Igreja do bairro, viu seus filhos e netos seguirem seu exemplo. Uns mais. Outros menos. Mas todos com Jesus no coração. Imagina a alegria desta menina ver sua primeira neta fazer primeira comunhão? Imagina ser ela a voz que anunciaria seu nome no altar da Igreja e ser ela a entregar a Certidão?

Numa cena como essa, a renda tinha que estar lá. Não podia esperar mais nenhum dia, nenhum outro acontecimento. Ia entrar para família pela porta da igreja, carregada no peito da neta. Branca, delicada, estava na hora da sua primeira comunhão.

O vestido das meninas tinha que ser branco. Simples. Sem ostentação. Meia e sapatos brancos. No máximo uma grinalda de pequenas flores brancas sobre os cabelos. Naquele dia, o mais importante entrava pela boca, prendia no céu e ia parar no pensamento e no coração. Para receber o corpo de Cristo, o lenço foi parar no peito da menina. Dobrado ao meio, em formato de triângulo, foi alinhavado no vestido pela avó. Nesta posição, a renda aparecia e via tudo de frente. E assim, de branco e renda no peito, a menina entrou na igreja. Carregava o que nem suspeitava. Levava o que nem sabia.



À dona da renda, Maria da Penha Facó Soares

sábado, 11 de setembro de 2010

O mosquito e a tosse



Zzzz… Zzzz… Zzzz…
Cof, Cof. ... Cof, Cof.
A sinfonia não parava.
Zzzz… Zzzz… Zzzz…
Cof, Cof. ... Cof, Cof.

À noite os dois sons se reuniam em perfeita harmonia e a menina, em claro, não dormia.

Zzzz... Zzzz... Zzzz... Concentrada no mosquito, seguia o seu vôo. De zumbido em zumbido, sentia o baile do atrevido. Cobria-se toda. Não sobrava um pedacinho seu pro danado do mosquito, mas ela sabia que sua vigilância tinha hora. O sono ia chegar e ela não teria como escapar. Ele ia invadir seu esconderijo ou ela mesma abriria caminho se descobrindo.

Um olho pregou e o outro quase acompanhou. De repente, um novo som entrou.

Cof, Cof. ... Cof, Cof. Era tosse da mãe.
Vai ver era o aviso de quem ama.
Vinham os mosquitos: Zzzz... Zzzz... Zzzz...
Contra-atacava a mãe em defesa da filha: Cof, Cof. ... Cof, Cof.

Uma batalha. Noite adentro.

Tris-tras. Tris-Tras. Tris-tras.
Os passos arrastados do pai rumo à cozinha.
Fiuuummm-fiummm! O fogo fazia borbulhar a água do chá.

Tris-tras. Tris-tras. Tris-tras.
Os passos de volta à cama. Ao encontro da mãe. A menina podia sentir o pai, meio lá, meio cá, acariciar os cabelos da mãe e desejar pro chá, milagroso, adormecer a garganta da mulher. Soldado atento ao inimigo, meu pai não dormia em perigo.

Tris-tras. Tris-tras. Tris-tras.
Com a caneca vazia na mão, o pai ia ver a única filha. Cobertas no corpo, ok. Temperatura, ok. Carinho de última hora, ok.

A menina sorria sem ele ver. De olhos fechados, meio lá, meio cá, ela se despedia em silêncio do pai. Ela e a tosse.
Os mosquitos: Zzzz...Zzzz...Zzzz...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

À Procura



A menina estava preocupada. Procurava e não achava. Aonde havia deixado? No quarto, não estava. Debaixo da cama, nada. Na estante, entre os livros, quem sabe? Também nada. No banho, será que a encontrava? Pelos cheiros da cozinha terá sido atraída? Em todos os cantos da casa, era só o que via: nada.

Saiu à rua. Ela gostava do mar. Da areia da praia. Na certa, estava perdida por lá. A menina olhou. Sua vista alcançou o horizonte e todos os seus sentidos juntos, em alerta. Vendo o mar; ouvindo o bater das ondas; o vento no rosto; o cheiro de maresia; o gosto da água de coco. Cadê? Onde você foi parar?

Fugiu. Terá ido pra uma terra distante, desconhecida? Se perdeu na multidão? Encontrou alguém que lhe desse o devido valor?

- Se encheu de mim!? - berrou a menina.

Que aflição!

Mesmo sem querer, mesmo sem perceber, vai ver a menina havia feito algo de errado. Por que ela iria desaparecer?

Foi a sua preguiça? Sua dificuldade de dizer o que sentia ou o que queria? Devia ter se esforçado. Dito:

- Não é todo dia que a disposição me desperta. Não é todo dia que uma luz se acende. Às vezes, fico apagada.

Mas isso teria adiantado?

Agora, sem ela, seria ainda mais difícil acordar. O que fazer?

Talvez, esteja aqui. Escondida na folha branca. No lápis preto.

Não foi no primeiro, acho que no segundo ou terceiro traço, a menina despertou:

- Ah! Te peguei! – e, da euforia ao sussurro, pediu, clemente:

- Fique aqui, assim, comigo. Sempre.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Rio Belo




Um Rio independente. Um Belo presente.
Um Rio de alma. Um Belo de calma.
Um Rio artesão. Um Belo poeta.

Um Rio e seus espaços. Um Belo e seus casos.

Um Rio atravessa. Um Belo desperta.
Um Rio de amor. Um Belo de dor.
Um Rio inventor. Um Belo professor.

Um Rio por Santa. Um Belo pela Santíssima Trindade.

Um Rio teimoso. Um Belo composto.
Um Rio de correnteza. Um Belo de leveza.
Um Rio de Janeiro. Um Belo Horizonte.

Um Rio Belo pela palavra. Um Belo Rio que passa.


Ao Belo Rio que passou por mim no 12º Salão da FNLIJ, obrigada! 
Um Rio chamado Lygia Bojunga e um Belo Bartolomeu Campos de Queirós.



quinta-feira, 17 de junho de 2010

Botões



Saudade tem idade? Se tiver, a que sinto dos meus avós vai comigo daqui pra eternidade. Saudade às vezes dói. De uma dor que não se apaga. Se esconde, anda, trabalha. Não some. Não dorme.

Avós. A chance de conhecer o lado doce da vida. Dos bolos, das vontades feitas porque feitas, das fantasias alimentadas com sorrisos, idéias, palavras, presença. Sem o amargo das broncas, sem a culpa do sim, do não ou do talvez. Avô não erra. Avô avança.

Avós. Feitos de presente. Presente do passado. Experiência e amor doados. Amor aos montes.

Quer brincar de casinha? A avó dá o arroz, o feijão, todos os grãos. Se espalhar? É só catar. Avó sabe que a conseqüência é o do tamanho que a gente vê.

- E isso, Vô? O que é isso no seu peito?

- É um botão de uma camisa que ficou preso. Grudado em mim.

- Como assim?!

- A sua Bisa foi passar a minha camisa de botão. Eu era um menino. Logo depois que ela passou, nem pensei: vesti. De tão quente que o botão estava aqui ficou.

- Posso apertar?

- Olha que tá quente, Chulinha. Vem devagar.

Eu fui. Uma. Duas. Três. Milhares de vezes. Como quem toca brasa em fogo, eu tocava o botão do meu avô. A cada toque, a mesma história. O ferro. A Bisa. O menino. O avô. O botão.

Vai ver que são feitos assim, os avós: botões em nossos corações. Estão lá. Apertados. Quentes. Pra sempre.


Aos meus avós: Celso, Maria da Penha, Maria da Penha e Eddie.

Maria da Penha



A oração do anjo da guarda.
As compras na Cobal.
A conversa amiga com os feirantes.
A cantoria na igreja.
A catequese. A doação.
As novenas com pão de Jesus em casa.
O café. O almoço. O jantar.

Os encontros em família.
O amor ao próximo até o distante.
A conversa sem pressa no telefone.
A voz doce que acalma. A calma.
O incentivo na presença. No olhar. No carinho sem hora pra chegar.

O dever de casa. A vontade de ensinar.
O caderno de caligrafia.
O bolo de chocolate. A pizza inventada.
O riso alto e franco.
A coragem. A força. A imaginação.
O café. O almoço. O jantar.

Maria da Penha.
Ter uma já seria sorte grande, bilhete premiado.
O que dizer de duas?
Uma mãe do pai. Outra mãe da mãe.
Uma mais Maria. Outra mais Penha.
Ambas, minhas.
Meninas. Mães. Avós.


Às minhas duas Marias da Penha.                                       

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Torcedora



A menina era uma torcedora incomum. No seu time jogavam todos. Lados não havia. Só pontos de vista, ou melhor, uma vista aqui e outra ali pra torcer.

Logo que aprendeu a ler, a menina juntou-se ao time que sabe perder. Perder, juntar e misturar. Era uma espécie de turma que via em letra, trela. Em anagrama, a grama de Ana.

Torcer era contorcer, girar, mexer. No seu campo, uma palavra rala pra ser outra. Sua brincadeira preferida era encontrar muitas palavras em uma, inverter pra ter e ver.

Por exemplo, pegava AMORTECEDOR, torcia e criava:
Ter cedo amor.
O amor tece ou amortece a dor?
Mora amor na dor ou mora a dor em Roma?
O morador tece.
Tece a roda do amor.
Morte ao amor na dor.

Outro dia, ela cismou com JABUTICABA, remexeu e virou:
A aba do jabuti
Acaba em ti.

Assim, torcer virou mania. A menina já sabia. Quando ia ao metrô descia ao temor. No palco só via polca. Num ator sempre uma rota. No sabor e na estação ela só enxergava uma rosa, seta em ação. No livro, virol ou voril, genérico do doril!

E Carroceria? Seria um raro rio que ia? Não, não podia. Era só um raro que ria. Em Mariana ela sempre via duas: Maria e Ana. De aquecedor, ela suspeitava: será que realmente aquece a dor?

Vai ver essa mania que anima, vinha do nome que a mãe havia escolhido pra menina.

Diva vida via e, por isso, torcia.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Olho-D’Água



Ponto de chegada: a dor.
Sob a areia, a lama, desapareceu a casa e, com ela, o menino.
Onde estava? Podia ser outro?

O bombeiro cava. Tenta. Sofre.
O pai está lá. Assiste. Chora.

Olhos d’água numa família.
Inteira? Totalmente pela metade.
Partida. Destruída.
Como a casa fica a família.
Soterrada. Sufocada. Sofrida.

Terá sido um rascunho de vida?

No céu uma nova estrela habita.
Uma vida eterna. Sem esboço. Definitiva.
O menino mora no Paraíso.
No ar. Livre. Solto.

Aqui fazemos nossos rascunhos de vida.
No chão. Presos. Envolvidos.

Cadê o menino?
Está na mãe, no pai, nos avós, nos primos, nos tios, nos amigos.
Olhos-D’Água de sua família. Perene.
Chegou até mim, até você, a todos nós.

Viver com os outros dentro de si.
Povoado por eles. Junto deles.
Uma linha entre o céu e a terra.
Invisível. Forte. Permanente.
Ponto de partida?

A cada dia, um novo começo.
Um rio pode até secar.
Pela areia ser coberto, interrompido.
Mas um Olho-D’Água pra sempre viverá.


Dedico a Marcus Vinícius, o menino.

O fiapo de Carolina



Cabelos cacheados, abaixo do ombro. Branquinha como areia da praia. Grande como um gigante. Brincava, corria e estudava. Como toda criança, Carolina era única e parecida. Diferente e igual.

Um dia Carolina viu que três manias não combinavam: dormir, ver TV e ajeitar os cabelos. Acho que foi assim que Carolina descobriu, sem conhecer, que se duas coisas não ocupam o mesmo espaço, imagina três!

Dorminhoca por parte de mãe; fascinada por TV por parte de pai e vaidosa por natureza própria tinha dias que o tempo não a ajudava. Os minutos eram poucos ou rápidos demais para os desejos de Carolina.

- Se durmo demais, não vejo TV. Se vejo TV, não faço o dever. Se ajeito o cabelo, não chego a tempo. Como fazer?

Não adiantava a mãe explicar sobre as horas, os minutos e os segundos. Pra Carolina existia todo tempo do mundo.

A mãe ia da doçura à loucura em segundos, mas Carolina não entendia...

Até que numa manhã um desastre aconteceu! Um fiapo se desprendeu! Dos cabelos presos em maria chiquinha de Carolina, o Fiapo fez uma revolta pra contar uma história.

Carolina agarrou os cabelos com força, como se não fossem seus, e falou:

- Estou horrível!! Olha este fiapo solto!!! Não vou assim e pronto!

Faltava 5 minutos pra chegar na escola e a menina perdida com seu Fiapo, nem deu bola.

O Fiapo, sem demora, falou aos quatro ventos:

- Carolina você escolheu.

- Escolhi, o que!? Sair com você a dar tchau na rua pra todo mundo?

- Escolheu dormir mais que a cama. Como já tinha feito o dever, escolheu ligar a TV. Lembro da mamãe perguntando: “Filha vamos tomar banho, arrumar o cabelo?” e você respondeu: “Me arrumo rápido, prefiro ver TV”.

- Mas Fiapo, por favor, vá pro seu lugar! Veja! Estou horrível!

- Menina... O que é um fiapo solto num sorriso maroto?

- Querida, vamos! Olha a hora! – gritou a mãe.

A menina olhou pra Fiapo. O Fiapo olhou pra menina. Diante de sua escolha, lá se foi Carolina.


Dedico à minha pequena Helena.                           Foto: Juliana Failace

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Planeta Vermelho

Alô, Alô? Planeta Vermelho? Câmbio? Tem alguém ai? Oiiiiiiiiii. Meu nome é Helena. Tem alguém ai? Bom, sei lá. Ninguém responde, mas deve ter quem escute.

Passo e repasso e não consigo entender. Por que tem que ser passo a passo? Por que não de uma vez? De enxurrada? De repente, que nem chuva que cai sem avisar; carro que passa na rua; caminho que se abre na frente de quem anda? Já sou grande. Tenho 6 anos. Por que pra aprender a ler tem que ser passo a passo, sílaba com sílaba, como diz a minha mãe?

Sabe, Zig – posso te chamar de Zig? Então, posso? Minha vó diz que quem cala consente, hein? Tudo bem Zig. Já vi que ai no Planeta Vermelho o negócio é ficar de orelha em pé. Vai ver vocês nem tem boca. Isso não é problema pra mim. Gosto de falar e você de ouvir. Já formamos uma bela dupla!

Comigo ninguém pode. Adivinho. Invento. Crio. Se me fazem uma pergunta, eu respondo. Se me pedem pra ler, junto p com a e, do pa, já adivinho se é pato, papo ou patati patatá. Minha mãe fica brava. Perde logo a paciência e ai falo pra ela:
- Não gosto quando você fica com essa cara de nervosia.

É, nervosia. Eu não te disse que invento... Ela me olha que nem bicho. Ué, por que tem que ser assim, passo a passo, silaba com silaba? Às vezes, olho bem pra palavra. Olho mesmo, mas, de repente, encontro a lua... Pronto! Já é motivo de bronca. Minha mãe logo diz:
- Filha, pra ler de verdade, tem que olhar pras palavras, juntar as sílabas, passo a passo, não adianta olhar pro nada, pro além.

Ora bolas, além do papel na minha frente e um monte de letrinhas, têm tanta coisa que passa pela minha cabeça. Por exemplo, hoje a Cristina não quis brincar comigo, acredita? Ela é a minha melhor amiga aqui na Terra. Não Zig, ai no Planeta Vermelho, você vem em 1º lugar, pode ficar tranqüilo. E tem mais: o Jorge jogou o meu tênis no lixo na frente de todo mundo e me fez de boba. Fiquei com muita raiva! Mas depois passou. É, como no passo a passo, isso também foi e, depois, passou... Zig, será que a minha mãe tem razão?

Você acha mesmo que tem que ser passo a passo? Eu não. Passo por uma loja e tenho vontade de ler o letreiro. Na outra, não quero. Só um passo não tá de bom tamanho? Tantos passos num mesmo dia cansam pra chuchu! Isso acontece com você, Zig? Ai no seu planeta tem letras? Você tem que juntar sílabas? Já entendi! Você quer que eu te escreva? É isso! Você não fala, mas lê. Êpa, vou ter que aprender! Ainda não sei escrever cartas! Serve silaba com silaba, uma palavra por vez, passo a passo?

Lobo

Lobo é guerreiro.
Lobo abusa do tempo.
Lobo é peixe.
Nada contra a maré.
Fincou o pé na história.
Lobo avança.
Lobo não cansa.
Lobo tinha companhia.
Hoje está sozinho.
Lobo se adapta.
Lobo vive.
Lobo registra imagens.
Pára o tempo.
Lobo d’água.
Lobo resistente.
Lobo não é novo.
É peixe idoso.
57 anos de ofício.
É bicho antigo.
Quase extinto.
Lobo é memória.
Lobo é passado.
Lobo se faz presente.
Lobo mora num Jardim.
Do Méier. Bairro do Rio de Janeiro.
Lobo é Bernardo. Peixe das águas de março.
E, você, não se engane, Lobo é lambe-lambe.

O melhor amigo

Sumir. Desaparecer no além. Ser outro diverso, menos teimoso, mais carinhoso. O desejo de sumir com o que não gostava em si crescia, mas o menino não controlava aquilo que não gostava. O menino sentia que não agradava. De repente, lá estava ele, dentro daquele que queria sufocar, brigando com qualquer um ou lutando por pouco ou quase nada. Via-se pequeno, quando crescia diante de alguém.

Ai o menino parou. Olhou. Era pequeno, mas esperto. Quanto mais olhava, mais se assustava. Sua mãe também ficava brava, perdia a linha. Seu pai, vira e mexe, gritava e se irritava. Seus amigos também tinham seus dias ruins, não gostavam de perder. A mais doce das meninas, não resistia ao impulso de discutir com a melhor amiga.

Disputas. Raiva. Teimosia. Nada disso sumia. Nem nele e nem nos outros. Dava pra nascer de novo?, ele pensava. Como quem descobre um tesouro escondido no fundo do mar, o menino viu que teria um novo amigo pra cuidar. Seu mais novo amigo precisaria dele todos os dias, o tempo todo. Seria seu mais novo parceiro. Seu melhor ouvinte. Seu maior confidente. Ser amigo de si mesmo fez dele mais confiante pra enfrentar aquilo que nele não gostava. E se alguém perguntava: “Ei, menino, como você vai?”. Ele respondia: “Vou bem”.

Mais de um

De dia era um. De noite, nenhum.

De dia brincava, corria. De noite, sumia.

De dia estudava, criava. De noite, sonhava.

De dia crescia. De noite, parava.

De dia reinava. De noite, tremia.

Um de dia e outro de noite?

Num dia ou numa noite, ele descobriu como seria.

Vários. Nenhum. Noite e Dia.

A Busca

Não havia imagem. Nem pistas. Só o desejo de se aventurar. Rui caminhou sem ver. Caminhou pra algum lugar que o levasse a uma imagem. Qual? Rui não sabia. Não via. Não lia. Rui deixava ruir seu castelo de sonhos em busca de novos. Desconhecidos. Inimagináveis. Sem cor. Sem traço.

Aonde Rui ia? Ia ao acaso, à sombra do nada, em busca de coisa não especificada, não identificada. Que mistério a caminhada de Rui! Aonde o levaria? Rui não sabia. Mas queria andar. Queria ganhar: experiência, vivência do que não conhecia. Do que não via. Do que não lia.

Aonde Rui ia? Ele não sabia. Ainda assim, ia. Há passos firmes. Decididos. Exploradores. Humildes. Assim ele ia. Queria ver o que não via. Ler o que não lia. Conhecer a imagem que desconhecia.

Cesto de Letras

Decidida, Mariana correu à rua com a roupa que estava: uma calça surrada de ficar em casa, camiseta branca e tênis pra lá de usado. Cabelos ao vento, Mariana saiu a passos firmes. Daquele dia em diante, cataria as palavras soltas da sua rua. Onde já se viu deixar palavras caídas no chão, sem sentido ou significado? Ou pior: palavras malcriadas ou sem educação?

Tomou pra si o desafio de transformar sua rua num lugar digno de nota. Não era bem uma rua limpinha, de palavras comportadas que ela queria. Talvez, nem soubesse o que desejava, mas tinha certeza do que não queria. Onde já se viu jogar palavra no chão, igual lixo, sem valor ou reflexão? Palavras até vão ao vento, caindo como poesia, conto ou invenção. Mas assim, jogadas, abandonadas, ficam tristes, perdidas em grande solidão. Palavra precisa de companhia, não nasceu pra ficar no chão.

Com seu cesto de catar letrinhas, uma a uma, Mariana as juntou. Como já era tarde, ninguém a viu ou ouviu. Silenciosa como só ela, seus pensamentos travavam uma grande discussão. Feito o serviço, qual seria seu próximo passo?

- Vou com elas ou sem elas? Não posso deixar estas palavras sozinhas, agora abandonadas no meu cesto.

Mariana olhou seu cesto cheio. De A a Z, tinha até bola, chute, briga, amor, amizade, vergonha, carinho e palavrão. Tudo misturado: letras e palavras soltas. Umas doíam, outras nada sentiam e havia aquelas que a rua precisava. Mas palavra que é palavra só ganha significado quando tem autor. E quem diz ou escreve faz tocar o coração de quem recebe. Com seu cesto no colo, Mariana havia encontrado uma solução.
Passou a noite em claro. Juntou as letras e as palavras soltas como um grande quebra-cabeça. Cada letra ou palavra recolhida tinha seu formato, tamanho e cor. Mariana não pensava na forma, pra ela, o conteúdo iria se impor.

“Vizinho e vizinha,
Aqui coloco só as palavras que não machucam – no meu cesto, ficou um monte que dá até vergonha... – e com elas faço um pedido: vamos CUIDAR da rua. Nada de jogar palavras no chão. Você pensou na palavra que largou hoje? Em como ela se sentiu? E se fosse você que tivesse ficado sozinho? Acho que palavra sente frio. É que nem a gente, precisa de carinho. Não é justo deixar palavra jogada no chão. Pode falar, à vontade, o que quiser, quando quiser e pra quem quiser, mas deixe seu nome e diga pra quem é. As palavras agradecem: assim, elas vêm e vão, não ficam perdidas no chão.
Com amor, Mariana.”