terça-feira, 29 de julho de 2014

Parece que foi ontem



Atravessei o portão esbaforido. Queria chegar logo na banca pra comprar mais figurinhas da Copa. Faltava muito pouco pra completar o meu 1º álbum! Todo tostão que recebia logo se transformava na figura de algum craque.

No meio do caminho, vi na loja de doces da Dona Ângela uma coisa esquisita. Um treco. Parecia pequeno, mas podia ser grande. Parecia ser de papel, mas podia ser de plástico. Parecia com algo que nunca tinha visto. Um treco qualquer.

Sem perceber, lá estava eu: diante da vitrine da Dona Ângela pra tentar adivinhar que treco era aquele. Conversava com o tico e o teco em busca de alguma resposta.

Será que entro e peço pra ver? Mas a loja está tão cheia... E Dona Ângela não é muito de papo... E se perco a hora da escola? E se não consigo depois ir à banca? O Carlos vai estar cheio de figurinhas pra trocar no recreio...

Como quem cutuca pensamento, o seu Miguel se meteu no meio da minha dúvida:

- Pedro, meu filho, entre logo! Daqui a pouco, não passa o seu ônibus pra escola? Olha, que senão você se atrasa de novo.

O seu Miguel era nosso vizinho desde sempre. Vivia sozinho. Acho que não tinha filhos. Só uma irmã que, de vez em quando, aparecia pra visitá-lo. Toda vez que o ônibus buzinava pra me buscar em casa, ele sempre ia até a janela. Parecia me dizer adeus com os olhos, mas podia ser só uma esquisita mania.

Levei um susto tão grande que, de repente, já estava dentro da loja da Dona Ângela, ao lado do seu Miguel e diante daquele treco, que estava lá em cima, na última prateleira. Sozinho. Não havia mais nada perto dele. Só dava pra ver a lateral. Parecia meio velho, mas podia ser novo. Parecia não ser nada, mas podia ser alguma coisa. Que treco curioso!

- Então, Pedro? Quer um saco de balas de caramelo?

- Não, seu Miguel, obrigado...

A loja estava tão cheia que Dona Ângela nem notou nossa presença.

- Pedro, que tanto você olha?

- Pr'aquele treco lá em cima!

- O quê, meu filho? Não vejo nada... Que treco é esse?

Enquanto ele procurava o ponto da minha vista, me enchi de coragem, passei por umas dez pessoas, cheguei até a Dona Ângela, apontei pro treco e de uma vez só perguntei:

- Dona Ângela, que treco é aquele que parece pequeno, mas pode ser grande; que parece de papel, mas pode ser de plástico; que parece velho, mas pode ser novo; que parece não ser nada, mas pode ser alguma coisa?!

Falei tão alto que todos pararam pra me escutar. Foi igual cena de cinema. Sabe quando as pessoas e as coisas congelam e só você continua em movimento? Pois foi assim.

Dona Ângela, respondeu feito doce que desmancha:

- Pedro, isso não é um treco... Parece com este álbum que você carrega debaixo do braço, mas pode ser diferente.

Pegou um banquinho e alcançou a minha curiosidade:

- Aqui está a história de outro colecionador. Meu Pai.

De dentro do saco, ela retirou um a um. Mostrou todos os álbuns de figurinhas de Copa do Mundo desde 1958, quando o Brasil foi campeão pela primeira vez, na Suécia. Parecia uma aula de história, mas podia ser só a memória de uma senhora.

Virei pra trás e vi os olhos do seu Miguel igual a campo de futebol em dia de chuva. Cheio de poças.


- Parece que foi ontem...
 

4 comentários:

  1. Adorei este texto. Você está cada vez melhor!

    Bjs

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  2. Puxal,tenho tambem uma historinha com esse album, mas num sei botar no papel,mas um pedacinho dá, com 10 anos ganhei esse album do meu pai, com alguns pacotinhos de figurinhas, ao abri-los uma das figurinhas era uma das duas carimbadas que ficava no pé da taça, a do Dida... o resto conto ao vivo...

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    1. Que lindo, pai! Adorei essa história!
      Você sempre foi um cara de sorte! (E eu uma filha de sorte!) :-)))
      Beijos,

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