quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Um pé de quê?



Criei-me sozinha. Ao pé de uma jaqueira. Cada fruto no chão, um estrondo ao meu lado. Sempre vivi com medo. Fiz muita sombra pra me proteger.

Um dia, caiu uma jaca daquelas. Cheirava tão forte que se aproximou um menino. Doce, o cheiro o chamou e ele mal me olhou. Só olhos pra jaca e a jaca só dele.

De jaca no colo, o menino, cadê?

Quando vi, estavam aos meus pés. A jaca e ele. Vizinho e estranho, assim, perto de mim. Cheguei a ficar dura, mais presa ao chão, mas minhas ranhuras sentiram o peso do encosto do menino. Seu carinho afagou o meu medo. Até a jaca fez-se de amiga. Esparramou-se toda.

Feito luva de boxe, o menino calçou a jaca na mão. De lamber os beiços, ver o menino e sua jaca. Era quase uma jaca-menino. Tão grande.

Gosto de jaca pra mim era suspense. Aí, o menino ficou de pé. Olhou-me fixo.

- Você quer?

Ele falou comigo?! Será possível?!

- Oi. Você quer um pouco da minha jaca? – ele falou mais alto.

Lá longe, escutei uma voz.

- Obrigada. Não gosto muito de jaca...

- Já provou?

- Eu não – a voz mais perto.

- Jaca é docinha, derrete na boca feito manteiga. Prova?

- Prefiro essa aqui – a menina colheu uma parte de mim.

Sempre achei que morar perto de jaca era covardia. Minha fruta é pequena, durinha e parece com os olhos da menina.

- Huumm. Nunca comi uma dessas... Vamos trocar?

A sutileza envolveu o menino e a grandeza pegou de jeito a menina.

Meu medo, puft! Sumiu!

Olhei pro céu, de boca aberta e tronco apertado. Suspirei fundo.

Ver o amor brotar enterra até medo de sentir estrondo no chão.



Foto: arquivo pessoal - Boca Raton, EUA

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Pedra



Perda é pedra
Difícil remover
Melhor deixar quieta
Guardada

Quem perde
Ganha peso
Anda com outro
Dentro de si

Caminhar ao lado
Morar ao lado
Sentar lado a lado
De perfil, ver inteiro

Até que a pedra bate
Acerta de repente
Dura. Áspera. Enorme
Da noite pro dia, diferente

Dormir sozinho
Acordar acompanhado
Deixar de lado
Encarar: de frente

Pedra não descansa
Brinca. Estuda
Senta. Levanta
Rola pra cá, pra lá

Um dia vira jóia
Lapidada pelo amor
Só conhece
O tempo presente

Atravessa a correnteza
Bate fundo
Passa a morar
No interior de tudo

Pedra é prenda
Presa ao fio
Da memória
Brilha, eterna

No raro rio
Corre dentro da gente

Foto: arquivo pessoal